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Atualizado: 15 de jan. de 2020

Gielton

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Mulher de uns cinquenta e poucos anos. Elegante no vestir. Sapato de salto fino dourado. Vestido creme, abaixo dos joelhos, rendado no colo. Um arco marrom escuro prende o cabelo pintado de loiro.


Quase todos os dias o mesmo ritual. Adentra aquele restaurante chique para o almoço. De entonação pouco gentil, ordena.


- Desligue o ar condicionado.


Senta-se à mesma mesa de sempre - de vez em quando avança uma ou outra para frente ou para trás. Quase não faz diferença. O saguão é enorme. Toalhas de mesa finas em tom bege combinam com o mobiliário de cadeiras em palha marrom. Assentos super confortáveis.


Invariavelmente pede o mesmo prato: carne de sol com macaxeira. As exceções ao cardápio vêm em seguida. Exige, em português quase erudito, sem desviar o olhar para o garçom.


- Macaxeira sem manteiga de garrafa. Não quero vinagrete e nem farofa. A carne de sol mais para bem passada.


Apesar da boa aparência é rude e pétrea. Como se fosse dona do mundo, fala em tom imperativo. Manda e desmanda. Não conhece obrigado.

...


Anoiteceu. Pesquisas da Internet nos direcionaram ao São João, restaurante especializado em carne de sol.


- Bem vindos!


Santos, negro, alto e forte, nos recebe sorridente. Sorriso sincero de quem gosta do que faz. Nos conduz a uma mesa no canto. Mantém certa distância, mas permanece conectado aos nossos movimentos. Ao perceber que estamos prontos se aproxima.

Aprendeu a não contestar, mas oferece sugestões. Indica pratos e porções.


Depois da deliciosa carne de sol com macaxeira na manteiga de garrafa derretendo na saliva, ficou ali, uns quarenta minutos, conversando conosco.


- Percebi que não são daqui.

- Sim, claro, pelo nosso modo de vestir, né?

- É, mas não só. Pela forma como nos olham.


Completou baixinho, tapando levemente a boca.


- Ninguém aqui agradece garçom. Tem uma senhora loira, acho que é desembargadora. Deve ganhar bem. Vem todos os dias no mesmo horário. Esses dias está sumida. Deve ser o recesso. Primeiro, manda desligar o ar. Sua conta tem sempre o mesmo valor, cinquenta e seis reais.

- É mesmo? - E reclama!

- De que? - De tudo. Da carne, da macaxeira, do garçom. Mas vem todos os dias. Depois, pede alguém para lhe chamar um Uber. Obriga o motorista a desligar o ar e baixar os vidros.

- É mesmo?

- Imagina os caras. Daqui até o Bairro de Fátima nesse calor arretado de Teresina!


E continua... "No réveillon fiz um tatu ao molho de maracujá na casa de um amigo. Aprendi a cozinhar como garçom. Faço tudo, carne, peixe, frango..."


Fico pensando. Pessoas são pessoas. Seres que vieram para se tornarem humanos. Santos é um deles! De longe parece treteiro. De perto, ternura. A largura dos braços sugere força bruta. Desenvolveu o controle fino no trato com talheres, taças e pessoas. Aprendeu em vida a ler humores. Adequa-se. Às vezes palavreia, noutras, só o essencial. Mas, se encontra ouvidos disponíveis, solta a língua destrambelhadamente.

 
  • Foto do escritor: Gielton
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Gielton



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Estamos no Jalapão. Dessa vez, em uma expedição com jovens de diferentes partes do Brasil. Diferentes profissões, diferentes formas de ser e de ver o mundo. Certa apreensão contamina o ambiente. Em uníssono, todos, com pequenos desvios, reverberam por dentro. Quem são? O que fazem? O que pensam?

Estranho viajar com gente estranha. A Hilux é muito confortável, apesar da estrada cheia de costelas fazer tremer até o pensamento. O silêncio que se espalha em seu interior parece ter vontade própria. Como se soltar alguma palavra fosse entrar em alguma seara labiríntica de incertezas.

Pelo menos, a música é boa, a meu ver. Elogiei o condutor - guia e DJ do dia - quebrando o primeiro encanto.

Assim, fomos tateando como cegos as auras alheias. Percebendo nuances, sintonias e estranhamentos. Entre almoços, fervedouros e trilhas fomos rompendo o feitiço, sem perceber.

Ninguém sabia, mas o inesperado estava por vir.

Descemos em meio a um descampado quando, de repente, eis que surge uma cachoeira de águas verdes com um tom levemente escuro. Tão cristalina quanto nossos olhos podem ver. Talvez o verde da vegetação reflita sua energia sobre as águas deixando-as tão alegres quanto somos capazes de captar. Isso, nosso grupo captou. Como se uma sutil cortina de benquerença nos conectasse.

Pode ser a ducha branquinha escorrendo da pedra pouco acima do poço. Ou, quem sabe, a forte correnteza que, mesmo sem querer, nos leva para o canto. Os sorrisos estampados em todos os rostos era sinal de que algo diferente havia acontecido.

Cada um, ao seu tempo e ao seu modo, explorou as águas do Formiga. Alguns, como eu, ganhou a super hidromassagem por horas e horas. No cantinho da parte calma do riacho papos de filhos, netos, pais e mães, nos aproximavam do humano.

Quando vimos estávamos todos encostados no tronco rindo com uma espontaneidade inusitada nessa viagem. Parece que o bem querer nos tomou e identificamos que não viemos para esse passeio juntos por acaso. Aliás, nada é por acaso. Como se o motivo do nosso encontro fosse revelado pelo rio Formiga. E aí, meu caro, não importa quem são, o que fazem ou o que pensam.

Para celebrar essa sintonia fina tiramos fotos. Em sincronia, após a contagem, mergulhamos juntos enquanto o tic-tac frenético da go pro captava as luzes de cada um de nós. Somos pontinhos brilhantes... Um momento mágico de trocas de afeto, para guardar para sempre na memória.

Assim, a vida. Viemos para transformarmos uns aos outros.

 
  • Foto do escritor: Gielton
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Gielton


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Viajamos para estar no meio do povo, sentir a energia das pessoas, provar o cotidiano da cidade, os sabores da culinária, os odores atmosféricos. Esse contato mais de perto, fora do circuito turístico, nos faz viajantes especiais. Pelo menos, assim nos sentimos.

Pois bem, Carlos, nosso super guia local, nos enfiou na "chapa", uma Van para transporte das pessoas simples e pobres de Maputo. Estava estacionada, mais ou menos no meio da rua, próxima à grande praça. Era branca e bem detonada. Traços de ferrugem pincelavam sua lataria. Manchas pela carroceria eram como as feridas da vida.

O entorno, cheio de vendedores ambulantes, trazia cor e vida ao centro da cidade. Dali avistávamos o grande mercado e a loja do Elefante, especializada em capulanas. As moçambicanas adoram e deixam o cheiro das cores por onde passam. Seja simplesmente amarrada na cintura ou como um turbante tecendo o penteado. São lindas, as capulanas... e as moçambicanas!

Entramos e nos assentamos. Haviam apenas três pessoas na frente. Escolhemos a fileira do meio. Carlos sentou-se logo atrás. O trocador em pé, à porta, gritava em português o itinerário, enquanto os passageiros entravam. Ele dizia, "vamos encher, vamos encher!" E foi, enchendo, empanturrando... Quatro pessoas em cada fileira se espremiam, encostando ombros com ombros, pele com pele.

A proximidade facilita a percepção do outro e as trocas de energias. Apesar dos semblantes cansados ou preocupados, a alegria paira. O sorriso está no ar. Só agora, vendo de pertinho a nuca dos passageiros, notei que quase todos os homens usam cabelos muito curtos, tipo máquina dois e pé bem aparado. As mulheres, por sua vez, exibem suas cabeleiras com penteados diversos. A maioria valorizando a sua negritude.

Lotação esgotada. Partimos. Entreolhamo-nos. Conhecemos nossos olhares. Sabemos o que dizem. Estava escrito por dentro da pupila aquilo que só nosso pensamento podia ler, mas que o coração denunciava. Assim fomos. Quase não percebi o caminho. Minha atenção voltava-se para dentro. Fiquei imaginando o cotidiano daquelas pessoas, observando os movimentos, os olhares, os dizeres, o silêncio.

De repente, uma parada. Ninguém desce. Mais duas pessoas entram. Uma jovem com seu bebê preso à capulana amarrada entre os ombros e a cintura. Não é possível que ela vai entrar. Entrou. Não tem lugar. Tinha. Ajeitaram mãe e filho em um banco na frente virado ao contrário do nosso. Mais apertado que tudo. Pouco à frente outro apeadeiro. Entrou um homem com roupa social, paletó cinza e calça comprida. Era mais gordinho. Esse não vai caber. Recolheu a bunda para que a porta se fechasse e permaneceu em pé, no canto, com os dois braços abertos sobre as cabeças das pessoas. A posição era esdrúxula. Ninguém reclama! Seria uma forma de se solidarizar com a precisão do outro?

Mais algumas curvas e chegou! Já? Tão rápido! Carlos indicou que era hora de descer. Saí espremendo, raspando entre as pessoas, contorcendo o corpo sobre a cadeira até alcançar a calçada. Olhei para trás. Minha mulher ainda se desvencilhando dos obstáculos, também aterrissa no passeio. Carlos pagou nossa passagem. O valor? Nem imaginam. 10 meticais (60 centavos de reais).

A viagem durou uns vinte minutos, mas o experimentar da "chapa" em Maputo ficará para a eternidade. Poucos têm essa honra, nos disseram alguns amigos, moradores de Maputo, que nunca entraram em uma "chapa".

Assim, a vida. De repente, o inusitado aparece. Hora de agarra-lo com força e sentir.

 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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