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Atualizado: 25 de abr.

Gielton


Blog Escrivências - Cabeleira







Levei anos para entender: esses meus cabelos crespos não precisavam de conserto. Precisavam de dono.


O antepassado, meu pai trazia à tona, orgulhoso:


— Meu bisavô era negro. Carrego em mim seus cabelos crespos encaracolados.


Apesar da herança da crina, meu pai era um sujeito branquelo de olhos azuis. Vai entender...


Nasci o mais moreno da família. Cabelo duro, grosso, ondulado e ressecado. Para muitos, quase um "bombril sem utilidades". Seria algum gene? Algo por entre moléculas do DNA?


Briguei comigo por décadas. Lutei contra minha aparência a quase descabelar. Injusto. Poxa, não me deram escolha. Nasci assim. Persegui um modelo estético dentro do caixote. Só que não havia encaixes. Por tempos, senti o peso do aparentemente diferente.


Ainda criança, dormi de touca. Sabe aquela meia de nylon? Pois é, essa mesma. Penteava o cabelo rodando todo para um lado. Colocava a trunfa na esperança de alisá-lo. Depois, invertia o giro e vestia a touca de novo.


No espelho, estranheza. Mesmo aparentemente lisos, os fios subiam como que arrepiados de horror. Não se acomodavam sobre o couro, não balançavam ao vento. Para piorar, na piscina pareciam impermeáveis.


Custei a desistir. Na juventude, disse a mim mesmo: meu cabelo não se engraça com o pente. Assim será! Assumi os cachos. Porém, mal se enrolavam. A vergonha lá no alto os tosquiavam rente ao pé da cabeça, como meu pai, meus primos, meus vizinhos, meus colegas...


Admirava os caras cabeludos, os poucos. Sentia inveja! Talvez, desejo. Vontade de poder ser. Não podia. Quem sabe um novo visual me torne melhor? Azeda ilusão!


Tentei algumas vezes fugir da tesoura. Atravessava a rua para evitar o barbeiro. E se ele me reconhece?


— Nossa, tá precisando de um corte, hein?


O ganho de volume era igual ao da decepção. O espelho desbarrancava a realidade. O danado crescia para cima. Eu, queria para baixo.


Certa vez fiquei tão, mas tão furioso com meu reflexo que, taciturnamente, baixei no fígaro. Em casa, a surpresa...


— Que isso, meu filho?


— Nada, não, mãe, deu vontade de raspar. Só isso...


Por anos a fio mantive fios rentes, comportados, adestrados e doutrinados, como a mim mesmo. É quando não se pensa mais... Vai-se.


Aposentei. Os medos continuam, mas o olhar do outro importa menos. Meus anseios ganharam voz. Posso seguir sem saber o que há depois da curva.


O espelho? Ah, esse continua obedecendo as leis da Física, mas a imagem ao fundo é mais acolhedora. Me vê sem julgamentos. De cá, estou também aprendendo a jogar o "foda-se".


Nunca tive juba tão grande. Quase um leãozinho ao Sol, Caetano que o diga. Há dúvidas ainda, mas... Por ora adotei a tiara para domar a rebeldia ou a gominha para conter o estardalhaço. Sigo contente! Seria meu fio condutor me penteando?


Assim, a vida! Quantas voltas para se (acon)chegar...


 
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A brisa esfriou o tempo e nos expulsou bem antes do que pretendíamos. Ainda bem, pois abraçamos uma experiência culinária e existencial sem igual.


Maria D'Ajuda, esse é o nome dela. D'Ajuda, tão simbólico, tão representativo, tão significativo... Separou-se, por própria escolha, quando o caçula dos oito filhos tinha menos de 10 anos. Aprumou a coragem e elegeu a incerteza. O marido sumiu. Nenhuma ajuda nesses mais de 50 anos.


Pode até ser uma história como a de muitas mulheres negras brasileiras. Filhos cuidam dos irmãos menores enquanto, nas claras horas do dia, se ausentam. Varrendo, lavando e cozinhando em casa de patroas, trazem, quando muito, o escasso leite das crias. Sozinhas, extraem da esperança a força para matar seu leão diário.


Parece algo corrente com o qual até nos habituamos. Banalizar a carência alheia expulsa de nossos corações a compaixão. Endurecidos, nem notamos nosso semelhante ser humano.


Não, Maria D'Ajuda é digna de admiração. Exemplo de vida simples em terra distante, parcos recursos e baixo letramento. Abreviou da vida sabedoria. Do anos fez aprendizado.


A neta, ainda criança, prenunciava.


— Quando crescer quero ir para a faculdade.


— Que isso menina, tire isso da cabeça... onde já se viu uma coisa dessas?!


Expropriada por anos em pousadas de empreendedores sulistas que, aos olhos desatentos, romanticamente trocam a vida agitada da capital pela calmaria da beira mar, D'Ajuda seguiu sua sina de "a quem de direito carrega essa terra com todo respeito", como diria Gilberto Gil em Índigo Blue.


Após a última demissão arquitetou um pequeno restaurante na varanda de sua casa. Soube captar o agrado de sabores culinários e estéticos daqueles que vinham em temporadas. A comida, uma delícia, o espaço, agradabilíssimo!


Quando a copa do mundo veio ao Brasil, aquela neta estudiosa e dedicada a pouco ingressara na Universidade Federal do Sul da Bahia. A primeira da família, entre irmãos, pais, tios e avós a cursar o superior do ensino médio. Quanta honra lhe coube. Quanto orgulho da avó. Quão emocionante foi ouvir D'Ajuda contar essa história. Quão inesperado seria, se não fosse...


Sábia Maria D'Ajuda sabe quem a ajudou... Tempos bons de políticas que miraram as netas e filhas das empregadas e ofereceu essa oportunidade única a muitas famílias. Parece pouco, mas não. Sentir de perto engrandece, os pelos arrepiam, o coração amolece!


Prosear com Maria D'Ajuda, saborear seu arroz de polvo ao ponto e conhecer de dentro essa história entrelaçada, transformou nosso dia em puro encantamento.


Assim, a vida! O pouco que muito é!

 
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Gielton



Poderia ser desatenção. Outros diriam excesso de concentração. Não importa, o fato é digno de sua narrativa.


Sua filha estava na flor da adolescência. Hormônios pulsavam como pipoca estourando destrambelhadamente. Era um dia como outro qualquer: após a escola regressavam juntos para casa. Ele ao volante, ela, falante.


Relatava entusiasmada o acontecido.


— A turma inteira é apaixonada por ele, pai. Ele é bonito, mas... Sei não, acho meio sem graça e um pouco esnobe.


— É mesmo?


— Você não acredita pai. As duas eram as melhores amigas. Unha e carne. No recreio dividiam lanches e intimidades. Odeio aquilo! O cantinho da arquibancada testemunhava o tititi.


Parado no semáforo ele balbuciou.


— Sei.


Ela seguiu animada sua historieta. De fato, era exageradamente detalhista, mas isso pouco importa.


— Dizem que ele já tinha bebido bastante whisky. Vê se pode pai, nessa idade... Eu, nem toco, passo longe da bebida. Muitos ficantes estavam na varanda. Sabe como é...


Na curva da avenida em meio ao trânsito caótico da hora do rush ele balança a cabeça afirmativamente e diz.


— Sei...


— Foi sacanagem, afinal era seu aniversário de 15 anos. Eu não gosto de nenhuma das duas, mas dizer "bem feito", isso eu não falo não.


Jovialmente vibrante seguiu.


— Cê acredita pai, que pouco antes da valsa ela procurava desesperada seu namorado. Quando entrou naquele cantinho...


Ele interrompeu abruptamente.


— Já vi tudo, já vi tudo...


Confiante que o pai entretinha-se com sua história a menina-moça aguardou sua reação.


— Esse cara é um lerdo! Não tô dizendo?


Esbravejou para si ao mesmo tempo que, em um movimento brusco no meio do morrão, engatou a primeira em seu Pálio 1.0 e, enraivecido, socou o volante.


— Que merda, que merda!


A filha, ao perceber seu pai em outra dimensão, sentiu-se banhada pela decepção. Banho frio, por sinal, daqueles de gelar qualquer conversa acalorada. Acabrunhou-se juntando as mãos entre as pernas. Em silêncio e pensativa permaneceu até a garagem, duas quadras adiante.


Assim, a vida. Pela estrada afora...


Imagem do post em <https://pin.it/2N8azYF>

 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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