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Atualizado: 18 de ago. de 2022

Gielton





Às vezes é difícil pescar histórias para contar. Mesmo atento ao entorno, elas parecem escapar pelas frestas das distrações. Fogem pelas gretas do pensamento. Quando se vê, já se foram.


Esses dias têm sido assim. Talvez pelo excesso de afazeres. Pode ser pela desconexão comigo mesmo. Quem sabe pela tensão em escrever rápido algo que toque você aí do outro lado da palavra.


Minha metade diz, "não tenho obrigação". A outra responde, "mas eu quero continuar escalando as palavras"... Eita dilema!


Ontem ela veio. Quem? A tal história boa de narrar, boa de contar e que fez trepidar minhas profundezas.


Vem comigo!


Outro dia, entrando na portaria, aqui onde moro (expressão expropriada), deparei com um porteiro desconhecido. Dentro do carro, pela janela aberta, reparei seu semblante. Tentei ser delicado.


— Boa noite. Gosto de tratar as pessoas pelo nome. Não me lembro de ter cruzado ainda com você. É novo por aqui?


Respondeu prontamente.


— Sim, tem menos de um mês que trabalho aqui. Passei muitos anos no material de construção do Jovino.


— Bem vindo, espero que dê tudo certo. Qual o seu nome?


— Avelino! Vai dar sim. Quero me aposentar aqui...


Empolgado, esticou os cantos da boca em um belo sorriso! Percebi sua alegria. Era visível.


— Vai sim! Boa noite.


Avelino... Vou esquecer. Sou ruim para nomes. Fixarei na primeira letra do alfabeto. Vou associar com avelã, que tem o "v". Pronto!


Duas semanas depois...


Estava de saída e me veio à mente o Avelino. Lógico que não lembrava seu nome, mas sua fisionomia era clara como neve... "E se for ele que estiver na portaria?".


Dito e feito, quer dizer, pensado e acontecido. Intuições...


— Boa noite.


Franzi a testa, enruguei as sobrancelhas e disse com aquele ar "desculposo".


— Não me lembro de seu nome completo, mas sei que começa com "a" e tem "v".


Girou a cadeira e disse.


— Avelino! E você é Gil...alguma coisa!


Levantou-se da cadeira e caminhou em minha direção.


— Você foi o primeiro a perguntar meu nome. Não te esquecerei jamais. Aliás, tenho notado que as pessoas aqui não costumam agir dessa forma...


Curvou o corpo, abaixou o tom da sua voz, e sussurrando completou.


— Sinto certo distanciamento! Muitos passam sem ao menos olhar. Apontam o cartão no leitor, esperam a cancela e se vão... É como se eu não existisse.


Levei um tapa! Saí honrado e pensativo... Que mundo é esse de tantas imagens e tão pouca visibilidade.


Assim, a vida! Histórias nasceram para serem contadas. Ou não!


Imagem do post <https://br.pinterest.com/pin/229472543505307394/>

 

Atualizado: 18 de ago. de 2022

Gielton





Sempre gostei de automóveis. Desde criança fascinava-me o ronco do motor, as alavancas da marcha, o volante, os pedais... tudo!


Aprendi a dirigir ainda adolescente. Tive oportunidades: meu pai fora, há tempos, instrutor de autoescola. Aproveitávamos juntos. Eu, garoto "fominha" ao volante; ele, saboreador da cachacinha no truco com os amigos, punha o leme em minhas mãos na volta para casa. Eram outros tempos. Hoje, inconcebível.


Sabe aquele sujeito, mesmo sem ser o dono da bola, é sempre o primeiro a entrar no campo? O fissurado? Pois é, sou eu na direção... Certa vez, viajamos em família quase 12.000 km. Fui o motorista por cada centímetro. Sou do tipo barbantinho, não solto fácil o volante.


Com tanto tempo de estrada poderia me acalmar, mas não, continuo sendo o primeiro a abrir a porta do motorista. É até bom para a relação. Minha mulher prefere que eu a conduza. No carro, apenas...


Atualmente, já vovô, gosto de recostar no banco anatômico, sentir as abas do encosto acariciando as costas, apoiar relaxadamente a coxas sobre o assento e deixar o pensamento vagar.


O silêncio do rádio desligado favorece a conexão entre máquina e mente. Enquanto o carro se mantém na curva as ideias escapam pela tangente. Seguem a reta e reencontram-se na descida. O pé no freio aciona o sistema mecânico, mas o pensamento acelerado calcula. Será que vai dar tempo? Calma, sempre dá!


O bom é quando a serenidade habita o estar. É como se o veículo conhecesse o caminho e fosse por si. Enquanto isso, a mente perambula longe no espaço. Quantas coisas vem! O pensamento se ancora na antena e, mesmo orbitando, acompanha o vai e vem da rodovia. Não é preciso velocidade, pelo contrário, a lentidão alicerça as sinapses que, eletrizadas, conectam em si. Aí, é só ir!


Alcanço o alto da serra do "Rola Moça". Acima das nuvens, mesmo quando "eneblinado" entre elas, é só beleza e amplidão. A vagareza do giro das rodas facilita o deslumbrar. De um lado, morros sobre morros, como se dormissem amontoados uns nos outros. Da direita, o grande vale, lá embaixo, pequenino como uma enorme cidade em miniatura. E é!


Passo pelos quebra molas e já estou no pé da serra após as curvas em ziguezague rodeada por paredões de pedra.


Quase em casa! O leve trepidar do calçamento acorda o pensamento. Aterro. Abro o portão. Estaciono.


Hora de descarregar o bagageiro...


Assim, a vida! Deixe-se levar pelas curvas macias do pensamento...


Imagem do post em <encurtador.com.br/kDG45>

 
  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Atualizado: 25 de ago. de 2022

Gielton




Sabe aquele cara metido? Isso, metido a besta? Pois é, sou eu... Arrogante, presunçoso, soberbo, prepotente, e um monte mais de outros adjetivos. Vai vendo...


Nossa primeira viagem para o exterior foi para a Bolívia, povo vizinho. Não sabia nada das suas tradições, do jeito de ser, da cultura. Vixe, muito menos da língua. Uma palavrinha sequer em espanhol. Tudo bem, dizem que é fácil aprender. Para mim então, vou tirar de letra!


Era dia ainda. Estava sentado na cadeira do corredor do ônibus a caminho de La Paz. O sujeito do lado se volta para mim e diz algo. Levei um susto! Não compreendi bulhufas! Nada, nada... Não fazia ideia nem do assunto! Encolhi os ombros e abri as palmas das mãos. Ele entendeu o gesto! Virou-se para o lado e me desprezou. Pensei: tô fudido! Aliás, como se fala essa expressão em espanhol?


Entrei "numas"! A cena do ônibus cutucou minha hombridade. Não deixarei por menos. Só saio daqui "hablando" na língua do povo.


Estiquei meus ouvidos a uma atenção descomunal. Aprendi a pedir "puedes hablar más despacio, por favor?" (você pode falar mais devagar, por favor?). O dicionário de bolso - papel mesmo, naquele tempo não tínhamos Internet como hoje - tornou-se fiel companheiro. Nos quartos de hotel, a TV sempre estava no mais alto do volume. De frente, me concentrava para entender o noticiário.


Percebi que ganhava atenção e cuidado quando mostrava interesse pela língua nativa. Perguntava: "como se dice" e apontava para algo, ou tentava um parco portunhol da palavra ou expressão duvidosa. Sentia-me acolhido. Os vendedores, garçons e até transeuntes eram quase sempre muito receptivos.


Com minha mulher levantava hipóteses. Como será que se diz em espanhol "vamos atravessar a rua"? Deve ser algo do tipo "vamos proceder la travessia". Gargalhávamos do "chute" bem dado que não trazia certeza de nada.


Me achava o máximo. A certa altura minha língua se soltou. Era quase como se não precisasse pensar muito para dizer algo. Se o comunicado saísse do eixo, o interlocutor corrigia o ângulo indicando pronúncias.


Um dia, admirando as centenas de fotos da viagem, brinquei com ela.


— Nossa, como sou fotogênico! Fico bem demais nas fotos...


Veio a dúvida: será que existe a palavra fotogênico em espanhol?


— Claro que não!


Afirmei com convicção. Na minha mente seria uma palavra muito específica, muito própria do português. Fotogênico em espanhol deve ser algo como "el bonito da foto"...


Perguntamos ao garçom, lógico, na pronúncia correta (fotorrênico). Ele respondeu prontamente algo como;


— Hay si, el que se acha, el que se tira de artista...


Nossos olhares se encontraram em um riso só! Era euzinho, o fotorrênico, o metido da parada.


Assim, a vida!


Imagem do post em <https://pin.it/64Njeih>


 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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