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  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Atualizado: 17 de mai. de 2023

Em homenagem ao meu filho Davi Santos Lima


Gielton



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Desciam os dois, motorista e passageiro, a Paulo Afonso. No cruzamento avistaram, em rua pouco iluminada sobre sua bicicleta, um jovem. Recostado ao tronco de uma árvore frondosa, o jovem permanecia na mesma posição. No entanto, havia movimentos. Gestos lentos, braços abertos, palavras inaudíveis e um olhar indefinido.


Nesse relance se entreolharam. O motorista disse:


— Olha ali? O que ele está fazendo?


— Sei lá, porra!


— Deve estar doidão. Certamente tem drogas...


— Que nada. É branquinho classe média. Deixa pra lá.


— Não, não... Vamos abordá-lo.


— Que isso, ficou louco? Vai acabar dando problemas. E se for filho de juiz?


Pararam a viatura na dobra da esquina. Alguns minutos depois, pelo retrovisor, o motorista avista o jovem ciclista. Usava dreads naturais e loiros. Era alto e magro. Esbelto. Aparentava uns vinte e poucos anos. A pequena mochila dependurada sobre os ombros poderia... quem sabe... Descia a Paulo Afonso distraído meio que no mundo da Lua, aparentemente desconectado.


A poucos metros abriu repentinamente a porta do automóvel e, quase interrompendo a passagem do jovem, o motorista interpelou-o energicamente.


— Parado. Desça da bike. Mãos para cima.


No susto, o jovem acatou as ordens.


— Na parede. Encoste na parede mantendo as mãos no alto. Abra as pernas.


Por detrás revistou-o, passando brutalmente suas mãos pelo dorso, entre as pernas, até alcançar a panturrilha. Enquanto isso, o outro, com os olhos, filmava seu perfil.


— Tire as drogas de dentro da mochila.


Com calma, o jovem respondeu.


— Não tenho droga, seu guarda.


— Abra a mochila.


Uma garrafinha foi o primeiro objeto a pular da bolsa.


— Que bebida é essa? Cachaça?


— Não, seu guarda. É água.


— Deixa ver.


Abruptamente retirou da mão do jovem. Abriu. Cheirou. Sem odores suspeitos descartou sobre a calçada.


Uma pasta vermelha, dessas de elástico nas pontas, foi retirada e aberta.


— Que códigos são esses?


— Partituras.


— Para que servem?


— A gente lê e toca a música.


— Como se lê isso? Ah, deixa pra lá.


Bolinhas brancas miúdas dentro de um vidrinho escuro foram alcançadas.


— O que é isso? Que droga é essa?


— Não, seu guarda. Isso é remédio homeopático.


O outro diz:


— É para stress. Minha mulher usa.


O jovem completa.


— Exato, serve para stress também. Mas, nesse caso...


Foi interrompido pelo motorista que, agora em tom raivoso, pronunciou.


— E a droga? Onde está?


— Não tenho droga, seu guarda.


— Quer dizer então que não está doidão? Porque conversava com a árvore ali em cima?


— Eu, conversando com a árvore?


— Isso mesmo, vi com meus próprios olhos, quase agarrado ao tronco daquela árvore na esquina.


— Não, seu guarda, eu estava me despedindo da minha namorada na janela do primeiro andar.


Assim, a vida! Salvo pela cor da pele.


Imagem do post em <https://pin.it/3vDX73P>

 
  • Foto do escritor: Gielton
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Atualizado: 31 de mai. de 2023

Gielton




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Adotamos o frescobol há muitos anos. Éramos jovens ainda. Foi entrando de mansinho em nossas viagens de férias.

Um companheiro e tanto! Tão amigo, que o agraciamos em uma de nossas canções: "Jogar só tênis é perder no frescobol".


Não deixamos a mocidade para trás. Ela está agora um pouco amadurecida. O que vale é o espírito da coisa! Sentimo-nos jovens no modo de jogar com o humano.


O ritual começa com a disponibilidade.


— Vamos bater uma bolinha?


Entre essa escolha e a bolinha levantar voo, há alguma demora. É necessário prender seu cabelo, espalhar protetor sobre a pele, limpar os óculos... Afinal, a visão límpida facilita a brincadeira. Enxergar os detalhes e o todo nos coloca a postos para os desafios.


Normalmente entre o Sol, a areia plana e o mar ao fundo iniciamos nossa peleja. Pernas levemente flexionadas, postura de atleta e fluidez. Afinal, esse jogo é puro deleite. Quem nos dera levar a existência como um jogo suave com menos amarras aos medos.


Somos competitivos sim, às vezes, mas no frescobol encontramos uma bonita parceria. Lançar a bola para a companheira na altura certa e na posição confortável é como acertar o passo na vida. É como andar lado a lado no trilho da existência.


A vida precisa de graça, de cor vibrante. Quando mornamos a relação, o banho maria cozinha lentamente as angústias. É bom colocar emoção. Ficar no pingue pongue lento e sem graça colore a partida em tom de cinza desbotado. De vez em quando é bom colocar força, raquetar com tesão. Tornar a pegada difícil, mas possível. Um desafio aos dois, tanto para quem corta quanto para o que apara.


Eventualmente descalibramos a medida. Vai forte demais em direção ao tórax que, sem tempo para desviar, apenas se protege da bolada bem intencionada. Ela costuma bater no peito, sem dores. Ainda bem! O coração amortecido segue seu ritmo em batidas!


Se vem muito baixa o esforço para salvá-la e mantê-la viva, pelo menos, até o próximo toque, é compensado pelo prazer de ver a gorduchinha ainda voando pelos ares. Alternamos os acolhimentos dos passes truncados de cada um.


Outras vezes voa alto. Inalcançável! Deixamos a bola do sonho, como diz Rubem Alves, ultrapassar seu limite. Não há problema. Em passos lentos de férias, sem tempo para a demora, é possível recuperar a redonda e recomeçar de um novo ponto.


Ambos irradiam esperança a cada bola salva, a cada desavença compreendida. Nos damos as mãos para seguirmos juntos apesar dos percalços.


Permitimos errar. Rimos quando a pelota ricocheteia na beirada da raquete e mergulha na água. As ondas a trazem de volta, boiando. Sem pressa recomeçamos a lida cotidiana da intimidade.


Mas aos poucos a perna fraqueja, os músculos do antebraço perdem força, a bola escapa facilmente para os lados. A flexibilidade para corrigir os lançamentos tortos esgota-se. Então, mesmo que segundos antes a emoção tenha movido o desejo do encontro, é hora de parar. Dar um tempo para reiniciar a trama do fio da vida com nova dosagem.


Lucidamente trocamos o jogo pela liquidez da água do mar que nos tira da terra e coloca nossos sonhos a flutuar.


Assim, a vida. O que vale é jogar!


 
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Atualizado: 14 de jun. de 2023

Gielton



Balançando entre as emoções

Gosto de pensar em eixos. Eixos do pensamento que, como um fio me conduzem a dimensões distantes, a ideias preenchidas em um todo simultâneo.


A Terra, por exemplo, possui um eixo, imaginário é claro, como aprendi com os professores de Geografia, lá pela quinta série. Mas, para que esse eixo? Relaciona-se à sua rotação, ao seu equilíbrio? Afinal, a Terra precisa se manter estável em torno de si. Firme em seu trajeto rodeando o Sol para que a vida transcorra em sua superfície.


Medito sobre meu eixo, imaginário, lógico. Visualizo-o vertical, iniciando no centro da cabeça, descendo pelo centro do tórax até tocar o sexo. Acompanha meus movimentos, segue comigo onde quer que eu vá. Interage com outros que afetam-se mutuamente. Eu que o estabilizo ou ele que não me deixa tombar? Sei lá, talvez um pouco de cada!


Por estímulos banais ele arreda de lado e inclina-se. Pode ser uma frase mal dita, um pedido não atendido, o leve tocar feridas em cicatrização, um sonho, aquele repentino café quente queimando a língua, um tropicão na pedra da trilha... As emoções pesam exageradamente sobre a balança descalibrada. Sei apenas que só percebo tempos depois. Lerdo eu, né?


Com o veio pendente e bambo como uma fina corda pendurada, desestabilizo-me. Faço das pequenas coisas armadilhas da alma que, ingenuamente, se deixam capturar como uma presa. Tolhido, o ser interior se contorce e esperneia como um besouro de costas para o piso. Entra em transe, em recorrências, gira atonitamente sobre si mesmo. A gangorra vai e volta enquanto a consciência se transfigura pelo caminho.


Uma noite bem dormida, uma película amorosa, um devaneio, aquele Jazz bem executado, seu time de futebol triunfando, sua mulher lhe acarinhando, podem aprumá-lo. O centro se restabelece. Liberta a alma das amarguras de outrora. O outono de folhas secas transmuta-se em primaveras floridas.


Aí sim, resgato minha essência. Reconheço-me. Encontro o amor dentro do peito e a paz no canto dos pássaros e na fina chuva do entardecer. Uma leve sensação de plenitude me habita.


Esses dias, uma cachoeira me deixou assim, como a Terra que gira suave sobre si mesma sem tontear. Deixei a ducha gelada leve como uma pluma, quase sem gravidade, volteando em harmonia com nosso planeta. Enquanto o Sol incidia luz e calor sobre a rocha, meu corpo nu se aquecia.


Assim, a vida.


Imagem do post em <https://pin.it/CxbMeQQ>


 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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