top of page

Atualizado: 7 de mai.

Gielton



Escorredor de louça sobre a pia



Eles não sabiam, mas estavam prestes a descobrir um novo jeito de amar…


Andavam grudados, agarrados um ao outro. Assim foi, desde o primeiro encontro até após muitos e muitos anos de casados. Dormir juntinhos e agarradinhos era o jeito único de ser do casal. Produziram muitas conchinhas. Lógico, na madrugada se desligavam. Afinal, sonhos são vivências próprias.


Escolheram profissões que lhes permitiam viajar juntos. Reuniam as crianças nas férias escolares e "cascavam fora" para as praias de Minas Gerais. Quem não conhece os mares no entorno de Belo Horizonte?


Hoje, a síndrome do ninho vazio, recheou o bolo da vida com calda e coberturas saborosas. Ele se aposentou, mudou-se para um canto de terra nos arredores da capital e a convidou. Ela, ainda presa à venda da "mais-valia", declinou o convite e permaneceu na antiga morada, apenas nos dias "úteis".


Eram agora um casal "moderninho": casamento híbrido. Ah, se a "moda pega" nesse modelo referência da pós-pandemia? Sei não!


No caso deles, o semipresencial vai indo. Igual a surpresa ao abrir um presente, sentimentos jamais imaginados são revelados. Como somos presos a molduras criadas por nós mesmos!


Chamadas de vídeo são atendidas em plena terça. É certo, que chegam na hora do disponível, já passado algum mau humor de qualquer energia ruim do dia.

Olhares e afetos são transmitidos. A câmera do smartphone revela uma beleza para além dos olhos. Acolhem-se mutuamente nos dramas de cada um. Há maciez e serenidade. Há disponibilidade no ouvir e desejo na língua.


Como antigos namorados, após horas de encontro à distância, despedem-se. Cada qual abraça o travesseiro do outro e o sono que vem é aquele que lhes cabe.


A saudade bate forte quando a sexta-feira se aproxima. O desejo do encontro se expande do tamanho da montanha à frente, vista da janela. Ele a espera de portões escancarados.


Na nova casa, esbarram os cotovelos sem rusgas. Da cozinha, cúmplice de parcerias culinárias, nascem banquetes a quatro mãos. O ronco da furadeira é sinal de entrega e contentamento a cada novo quadro pendurado. Ele lê para ela sua última crônica antes de ligarem a Netflix.


Mais tarde, o ranger da cama se mistura ao som do prazer quando, como em um passe de mágica, tornam-se um novamente.


Assim, a vida! O inimaginável agora é realidade.


 
  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Gielton



Estrada em espiral com árvores, rios e montanhas

Foi uma tarde triste. Era uma dor que nunca havia sentido. Como se tivessem arrancado algo do meu âmago, a que me pertencia. Queria chorar. Não consegui. Aspirei as lágrimas para dentro do globo ocular e balancei a cabeça para espalharem. Quem sabe assim, secam mais rapidamente e dissolvem meu sofrimento.


Não queria acreditar. Disfarçava como se não fosse verdade. Era ainda muito jovem para perder um dente e sair com esse enorme orifício na gengiva. Porque diabos meus ossos foram corroídos a esse ponto? Como as bactérias cavaram um buraco tão grande na raiz? Sem sustentação, qualquer coisa cai.


Saí do consultório com um dos molares embrulhado em um guardanapo dentro do bolso de moedas da calça jeans. Para quê? Recordação? Que "merda" de lembrança seria essa?


Deixa de ser imbecil e vai viver.


Vivi. Muitos outros se foram nesses longos anos. Habituei à falta, mas a tristeza atualizou a cada um arrancado ao alicate. Não os embrulhava mais no lenço de papel. Por alguns chorei lágrimas face abaixo. Por outros, engoli o desgosto.


Estou prestes a morder de novo! Passo a língua e sinto os pinos de metal boca adentro. Enxertaram osso de boi na cavidade desossada e, com uma broca, cravaram pares de bucha e parafuso de titânio na nova estrutura. Um monte! Minha arcada está agora definitivamente implantada.


Os pré e pós molares já foram moldados e na próxima semana tiro a prova.


Ainda não sei o que sinto.


Assim, a vida! Segue em espiral.


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>


 

Gielton



Água caindo de um chuveiro



Na manhã seguinte, Moacir deito- se novamente na mesma posição. Deixou os ombros relaxarem enquanto as energias do corpo eram mobilizadas. Sentia cada vez mais a tal fluidez que vinha junto a um enorme bem estar.


O sonho acordado desta vez o levou a um castelo medieval. Sobre uma mesa, muita comida, farta e variada. Homens barbados riam em gargalhadas sobejas. Os sons se misturavam ao emaranhado de mãos agarrando coxas de frango, pés de porco e taças metálicas de vinho.


Moacir ao centro participava e tinha domínio da cena. Ele, então, se levanta. Caminha até o canto. Os sons se distanciam. No cômodo ao lado mulheres seminuas se mostram. Moacir escolhe uma. A rejeita. Escolhe outra. Não a quer mais. Os olhares melancólicos não escondem a farsa de movimentos sensualizados. Quando uma mulher de semblante apaziguador lhe estende a mão, Moacir retorna. Abre os olhos. O teto está no mesmo lugar. Os pulmões continuam respirando.


Algo lhe impeliu para um banho matinal. Estava conectado consigo, com os outros, com o mundo, com as vidas... A água quente e volumosa caía sobre os ombros. O estado de perplexidade ainda lhe tomava o ser. A protuberância de sua barriga vista de cima lhe causou estranheza. Estava maior do que o normal. A água descia. A barriga começou a contrair-se, como se um filho dali fosse nascer. Sentiu náuseas. O ser deveria ser expulso pela boca. Tomado por uma intuição maior, Moacir expele pela boca, através de uma força intensa, algo não visível. A barriga murchou... Moacir não teve medo. Enfrentou. A voz vinda do alto da cabeça comunicava sua enorme decepção. "Somos companheiros de anos. Você vai me abandonar agora". Em um relance de lucidez Moacir ouviu de si mesmo "vamos abrir mais uma".


Compreendeu tudo e falou por dentro da cabeça. "Amigo, é para o nosso melhor. Temos que nos despedir agora. Não estou contra você, estou a favor de mim, de nós." Moacir sentiu uma rajada de raiva. O tom da voz interna eloquente e imperativa afirmou: "fraco como é, julga-se capaz de se libertar de mim?"


Com calma e astúcia Moacir repete. "Caro amigo, é chegada a hora de nos despedirmos. Preciso continuar minha marcha. Você, a sua. Sei que estará amparado. Adeus."


Ao entrar na cozinha ainda de cabelos molhados Clarisse espantada diz.


— O que houve com seu rosto? Quem te arranhou desse jeito?


Moacir disse.


— Quero apenas ser eu. Não bebo mais.


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

  • Ícone de App de Facebook
  • YouTube clássico
  • SoundCloud clássico
bottom of page