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Atualizado: 3 de set.

Gielton




Folhas de plantas ao por do sol


Estive hoje em um velório. Caminhando sobre a grama, antes de alcançar o saguão, o bailado de uma folha me resvala o nariz. Segue sua dança como se tocar o chão fosse uma mera consequência. Este átimo da natureza trouxe consigo uma aura em forma de pensamentos: seria a morte arbitrária? É justa a vida?


Poxa, há tantos casais estranhos, que se esbarram em cada esquina, cujos olhares são como pontas de uma lança atingindo âmagos. Logo ele que, junto a ela, brilhavam em uníssono. Cantavam as mesmas notas em harmonia como o violino e o violoncelo. Partilhavam o fluxo com tanta leveza e profundidade.

A morte é um refletir-se sobre a vida. E se fosse comigo? E se fosse eu quem continuasse ou deixasse minha amada?


Talvez pediria como Noel Rosa.


"Não quero flores

nem coroa com espinhos

só quero choro de flauta

violão e cavaquinho"


Dei alguns passos para fora e aquietei-me em um canto. Encontrei um lugar onde meu corpo sofresse menos peso. Deixei as pálpebras caírem e os cílios, feito uma cortina de rendas, trazerem uma leve penumbra. É necessário tempo para sair de um mundo e entrar em outro. Aos poucos fui me deixando.


Os sentidos aguçados tornaram estrondosos os sons do hall. Um borbulhar de gente papeando. O perfume adocicado das coroas de flores se misturava ao cheiro do café. Um ranger de cadeira cortou o ar. Não havia notado até então os risos de encontros entre velhos amigos.

Mesmo assim, fui indo. Para dentro ou fora de mim? Nem sei…


Quando os ouvidos não mais distinguiam os sons em forma de matéria, escutei algo vindo da curva do pensamento.


“A película do filme da vida é translúcida. A visão não capta sentidos, apenas silhuetas. O essencial se esconde nos interstícios: no que se perde, no que não se pode nomear.”


Assim, a vida. Não se explica: atravessa.

 

Atualizado: 18 de set.

Gielton


Bicicleta Monareta antiga


Arthur Souza Matos, dele, lembro nome e sobrenome. Fomos colegas desde o grupo escolar até o 2º grau. Morava no Prado, bairro vizinho — mais chique, mais longe da favela, mais elitizado. Ficava do outro lado da Av. Amazonas.

No início, meu pai me conduzia, mas, em pouco tempo, ganhei autorização para caminhar sozinho. Feito uma criança boba, pisoteava folhas caídas, chutava castanhas — absorto, como se o tempo fosse desnecessário.


Nessa época, Arthur já possuía sua bicicleta. Apesar de toda generosidade, tinha inveja da sua magrela. Foi nela que aprendi a me equilibrar em duas rodas. Poucos devem ter sido os tombos, pois deles me esqueci. No entanto, a fissura pela bike é viva ainda hoje em meus afetos.

Ainda me pergunto, o que tanto me atraía? Talvez a magia do equilíbrio precário. Ou a sensação de liberdade pelo vento no peito. Só sei que o desejo de ter a própria bicicleta crescia a cada dia.


Nunca passei fome, mas na minha casa, tudo era muito regrado. Sonhar com minha própria bike era um despropósito absoluto. Chances mínimas, pois dezenas de prioridades ocupavam o topo da lista.



Há lembranças que, como pedras no leito do rio, resistem ao fluxo do tempo.

Estava na casa dos Cainãna. Era um fim de tarde, véspera de Natal. Brincávamos de... nem sei o quê. Provavelmente, forte apache! De repente, me convocaram por cima do muro.


— Ô, Gielton! Mamãe tá te chamando!


Subi as escadas “num pau só”, tamanha a raiva que senti. Que saco! Já estou de férias. Só falta minha mãe mandar catar matinhos na horta.


Adentrei o alpendre esbravejando.


— O que foi? Precisava gritar desse jeito?


A voz foi amolecendo. A cara de bravo deu lugar à expressão de surpresa, com um leve suspender de sobrancelhas. De repente, os passos passaram ao modo câmera lenta. Fui entendendo devagar, ficha caindo, olhos marejando até que...


Lá estava ela. Uma Monareta dobrável, verde-claro e novinha em folha. As rodas pequenas combinavam com o quadro ultramoderno. Ela brilhava tanto quanto meus olhos. Olhos castanhos que se esverdearam com o reflexo de sua pigmentação.

O queixo caiu. O coração disparou. Perplexidade. Algo indescritível — um zumbido ao longe — me tirou do ar. Tinha uns treze anos e confesso: foi o melhor presente da minha infância.


Reunidos em torno da bicicleta vieram as regras e restrições. Primeiro, a bicicleta não era minha, era nossa, dos três irmãos que teriam direitos iguais. Segundo, andar só na nossa rua. Terceiro, quarto... Já nem ouvia mais.


Peguei a bichinha e dei a primeira volta. Desci e subi a rua exibindo toda a minha destreza com a máquina. Foi paixão à primeira pedalada. Felicidade é pouco para medir a largura da emoção.


No início tive mesmo que dividi-la com os irmãos, mas passada a euforia inicial, a assumi como minha, tanto no tempo que permanecia montado, quanto nos cuidados. Aprendi a desmontar e montar todas as suas peças: ajustar o freio de borrachinhas, engraxar as esferas das rodas… Torcia, encaixava, apertava e desapertava parafusos como um mecânico de verdade.


Foram anos de peripécias em cima dela. Tornamo-nos amigos inseparáveis. Com ela, extrapolei limites de velocidade e explorei horizontes geográficos proibidos. Um dia, escapuli de casa e, com alguns amigos, fui baixar em Betim. A bronca foi do tamanho da viagem.


Meu corpo cresceu, as pernas ficaram longas para aquelas rodinhas e os desejos foram mudando de lugar. Agora, o coração palpitava por outras formas de amar.

A Monareta foi mais do que uma bicicleta. Foi meu passaporte para o vento. Não sei onde foi parar, em qual ferro velho foi enterrada, mas sei que ainda pedalo em suas lembranças.


Assim, a vida. Feita de vento, rodas e memórias.

 

Atualizado: 25 de nov.

Gielton

Mão de um idoso recebendo água de uma torneira

Por que tentamos segurar o que escorre?


A vida é frágil, todos sabemos. A morte é a certeza da vida. Deste mundo não levamos nada. No entanto, caminhamos como quem segura água com as mãos, agarrando o que escorre. Apego é tolice antiga que não soltamos. Por quê? O que nos faz tão tolos?


Andei pensando sobre isso. Estou na idade dos pensamentos futuros. Tipo, o que será de mim na virada da página do calendário?

As crianças, peritas do instante, brincam sem medo de perder o tempo. Imersas, lambuzam o queixo apenas para decifrar o sabor vermelho dos morangos. Os jovens, ousados e equilibristas da vida, encaram as paixões como se fossem eternas. E são!

E nós, os já avós, como negociamos com o tempo escasso e, ao mesmo tempo, abundante?


Sabedoria, talvez seja a palavra mágica. Essa não brota do chão mal semeado, nem cai do céu como em dias chuvosos. Muito menos invade os pulmões, como o ar que não pede licença. É uma alvenaria lenta e solitária, tijolo a tijolo. A argamassa que transborda pelas beiradas vem em forma de perdão e aceitação sem julgamentos.


Sabedoria seria o fruto maduro das boas escolhas? Um jeito sereno de estar consigo diante dos outros? Aceitação como chamado para o mais? Ou apenas uma escuta capaz de parar o relógio?


Seja o que for, quero alcançá-la. Deixar fluir a certeza do inesperado. Sentir plena a existência enquanto há tempo. Ser apenas eu em essência. E amar… Com o coração, a voz, as entranhas, o corpo todo. Amar com a alma até transbordar!


Pronto, no dia da partida, fechar a porta com delicadeza, dar um "até logo" baixinho e seguir como quem cumpriu a própria travessia.


Assim, a vida! E só…

 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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