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Atualizado: 18 de ago. de 2022

Gielton





Sempre gostei de automóveis. Desde criança fascinava-me o ronco do motor, as alavancas da marcha, o volante, os pedais... tudo!


Aprendi a dirigir ainda adolescente. Tive oportunidades: meu pai fora, há tempos, instrutor de autoescola. Aproveitávamos juntos. Eu, garoto "fominha" ao volante; ele, saboreador da cachacinha no truco com os amigos, punha o leme em minhas mãos na volta para casa. Eram outros tempos. Hoje, inconcebível.


Sabe aquele sujeito, mesmo sem ser o dono da bola, é sempre o primeiro a entrar no campo? O fissurado? Pois é, sou eu na direção... Certa vez, viajamos em família quase 12.000 km. Fui o motorista por cada centímetro. Sou do tipo barbantinho, não solto fácil o volante.


Com tanto tempo de estrada poderia me acalmar, mas não, continuo sendo o primeiro a abrir a porta do motorista. É até bom para a relação. Minha mulher prefere que eu a conduza. No carro, apenas...


Atualmente, já vovô, gosto de recostar no banco anatômico, sentir as abas do encosto acariciando as costas, apoiar relaxadamente a coxas sobre o assento e deixar o pensamento vagar.


O silêncio do rádio desligado favorece a conexão entre máquina e mente. Enquanto o carro se mantém na curva as ideias escapam pela tangente. Seguem a reta e reencontram-se na descida. O pé no freio aciona o sistema mecânico, mas o pensamento acelerado calcula. Será que vai dar tempo? Calma, sempre dá!


O bom é quando a serenidade habita o estar. É como se o veículo conhecesse o caminho e fosse por si. Enquanto isso, a mente perambula longe no espaço. Quantas coisas vem! O pensamento se ancora na antena e, mesmo orbitando, acompanha o vai e vem da rodovia. Não é preciso velocidade, pelo contrário, a lentidão alicerça as sinapses que, eletrizadas, conectam em si. Aí, é só ir!


Alcanço o alto da serra do "Rola Moça". Acima das nuvens, mesmo quando "eneblinado" entre elas, é só beleza e amplidão. A vagareza do giro das rodas facilita o deslumbrar. De um lado, morros sobre morros, como se dormissem amontoados uns nos outros. Da direita, o grande vale, lá embaixo, pequenino como uma enorme cidade em miniatura. E é!


Passo pelos quebra molas e já estou no pé da serra após as curvas em ziguezague rodeada por paredões de pedra.


Quase em casa! O leve trepidar do calçamento acorda o pensamento. Aterro. Abro o portão. Estaciono.


Hora de descarregar o bagageiro...


Assim, a vida! Deixe-se levar pelas curvas macias do pensamento...


Imagem do post em <encurtador.com.br/kDG45>

 
  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Atualizado: 17 de mai. de 2023

Em homenagem ao meu filho Davi Santos Lima


Gielton



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Desciam os dois, motorista e passageiro, a Paulo Afonso. No cruzamento avistaram, em rua pouco iluminada sobre sua bicicleta, um jovem. Recostado ao tronco de uma árvore frondosa, o jovem permanecia na mesma posição. No entanto, havia movimentos. Gestos lentos, braços abertos, palavras inaudíveis e um olhar indefinido.


Nesse relance se entreolharam. O motorista disse:


— Olha ali? O que ele está fazendo?


— Sei lá, porra!


— Deve estar doidão. Certamente tem drogas...


— Que nada. É branquinho classe média. Deixa pra lá.


— Não, não... Vamos abordá-lo.


— Que isso, ficou louco? Vai acabar dando problemas. E se for filho de juiz?


Pararam a viatura na dobra da esquina. Alguns minutos depois, pelo retrovisor, o motorista avista o jovem ciclista. Usava dreads naturais e loiros. Era alto e magro. Esbelto. Aparentava uns vinte e poucos anos. A pequena mochila dependurada sobre os ombros poderia... quem sabe... Descia a Paulo Afonso distraído meio que no mundo da Lua, aparentemente desconectado.


A poucos metros abriu repentinamente a porta do automóvel e, quase interrompendo a passagem do jovem, o motorista interpelou-o energicamente.


— Parado. Desça da bike. Mãos para cima.


No susto, o jovem acatou as ordens.


— Na parede. Encoste na parede mantendo as mãos no alto. Abra as pernas.


Por detrás revistou-o, passando brutalmente suas mãos pelo dorso, entre as pernas, até alcançar a panturrilha. Enquanto isso, o outro, com os olhos, filmava seu perfil.


— Tire as drogas de dentro da mochila.


Com calma, o jovem respondeu.


— Não tenho droga, seu guarda.


— Abra a mochila.


Uma garrafinha foi o primeiro objeto a pular da bolsa.


— Que bebida é essa? Cachaça?


— Não, seu guarda. É água.


— Deixa ver.


Abruptamente retirou da mão do jovem. Abriu. Cheirou. Sem odores suspeitos descartou sobre a calçada.


Uma pasta vermelha, dessas de elástico nas pontas, foi retirada e aberta.


— Que códigos são esses?


— Partituras.


— Para que servem?


— A gente lê e toca a música.


— Como se lê isso? Ah, deixa pra lá.


Bolinhas brancas miúdas dentro de um vidrinho escuro foram alcançadas.


— O que é isso? Que droga é essa?


— Não, seu guarda. Isso é remédio homeopático.


O outro diz:


— É para stress. Minha mulher usa.


O jovem completa.


— Exato, serve para stress também. Mas, nesse caso...


Foi interrompido pelo motorista que, agora em tom raivoso, pronunciou.


— E a droga? Onde está?


— Não tenho droga, seu guarda.


— Quer dizer então que não está doidão? Porque conversava com a árvore ali em cima?


— Eu, conversando com a árvore?


— Isso mesmo, vi com meus próprios olhos, quase agarrado ao tronco daquela árvore na esquina.


— Não, seu guarda, eu estava me despedindo da minha namorada na janela do primeiro andar.


Assim, a vida! Salvo pela cor da pele.


Imagem do post em <https://pin.it/3vDX73P>

 
  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Atualizado: 31 de mai. de 2023

Gielton




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Adotamos o frescobol há muitos anos. Éramos jovens ainda. Foi entrando de mansinho em nossas viagens de férias.

Um companheiro e tanto! Tão amigo, que o agraciamos em uma de nossas canções: "Jogar só tênis é perder no frescobol".


Não deixamos a mocidade para trás. Ela está agora um pouco amadurecida. O que vale é o espírito da coisa! Sentimo-nos jovens no modo de jogar com o humano.


O ritual começa com a disponibilidade.


— Vamos bater uma bolinha?


Entre essa escolha e a bolinha levantar voo, há alguma demora. É necessário prender seu cabelo, espalhar protetor sobre a pele, limpar os óculos... Afinal, a visão límpida facilita a brincadeira. Enxergar os detalhes e o todo nos coloca a postos para os desafios.


Normalmente entre o Sol, a areia plana e o mar ao fundo iniciamos nossa peleja. Pernas levemente flexionadas, postura de atleta e fluidez. Afinal, esse jogo é puro deleite. Quem nos dera levar a existência como um jogo suave com menos amarras aos medos.


Somos competitivos sim, às vezes, mas no frescobol encontramos uma bonita parceria. Lançar a bola para a companheira na altura certa e na posição confortável é como acertar o passo na vida. É como andar lado a lado no trilho da existência.


A vida precisa de graça, de cor vibrante. Quando mornamos a relação, o banho maria cozinha lentamente as angústias. É bom colocar emoção. Ficar no pingue pongue lento e sem graça colore a partida em tom de cinza desbotado. De vez em quando é bom colocar força, raquetar com tesão. Tornar a pegada difícil, mas possível. Um desafio aos dois, tanto para quem corta quanto para o que apara.


Eventualmente descalibramos a medida. Vai forte demais em direção ao tórax que, sem tempo para desviar, apenas se protege da bolada bem intencionada. Ela costuma bater no peito, sem dores. Ainda bem! O coração amortecido segue seu ritmo em batidas!


Se vem muito baixa o esforço para salvá-la e mantê-la viva, pelo menos, até o próximo toque, é compensado pelo prazer de ver a gorduchinha ainda voando pelos ares. Alternamos os acolhimentos dos passes truncados de cada um.


Outras vezes voa alto. Inalcançável! Deixamos a bola do sonho, como diz Rubem Alves, ultrapassar seu limite. Não há problema. Em passos lentos de férias, sem tempo para a demora, é possível recuperar a redonda e recomeçar de um novo ponto.


Ambos irradiam esperança a cada bola salva, a cada desavença compreendida. Nos damos as mãos para seguirmos juntos apesar dos percalços.


Permitimos errar. Rimos quando a pelota ricocheteia na beirada da raquete e mergulha na água. As ondas a trazem de volta, boiando. Sem pressa recomeçamos a lida cotidiana da intimidade.


Mas aos poucos a perna fraqueja, os músculos do antebraço perdem força, a bola escapa facilmente para os lados. A flexibilidade para corrigir os lançamentos tortos esgota-se. Então, mesmo que segundos antes a emoção tenha movido o desejo do encontro, é hora de parar. Dar um tempo para reiniciar a trama do fio da vida com nova dosagem.


Lucidamente trocamos o jogo pela liquidez da água do mar que nos tira da terra e coloca nossos sonhos a flutuar.


Assim, a vida. O que vale é jogar!


 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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