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Gielton



Água caindo de um chuveiro



Na manhã seguinte, Moacir deito- se novamente na mesma posição. Deixou os ombros relaxarem enquanto as energias do corpo eram mobilizadas. Sentia cada vez mais a tal fluidez que vinha junto a um enorme bem estar.


O sonho acordado desta vez o levou a um castelo medieval. Sobre uma mesa, muita comida, farta e variada. Homens barbados riam em gargalhadas sobejas. Os sons se misturavam ao emaranhado de mãos agarrando coxas de frango, pés de porco e taças metálicas de vinho.


Moacir ao centro participava e tinha domínio da cena. Ele, então, se levanta. Caminha até o canto. Os sons se distanciam. No cômodo ao lado mulheres seminuas se mostram. Moacir escolhe uma. A rejeita. Escolhe outra. Não a quer mais. Os olhares melancólicos não escondem a farsa de movimentos sensualizados. Quando uma mulher de semblante apaziguador lhe estende a mão, Moacir retorna. Abre os olhos. O teto está no mesmo lugar. Os pulmões continuam respirando.


Algo lhe impeliu para um banho matinal. Estava conectado consigo, com os outros, com o mundo, com as vidas... A água quente e volumosa caía sobre os ombros. O estado de perplexidade ainda lhe tomava o ser. A protuberância de sua barriga vista de cima lhe causou estranheza. Estava maior do que o normal. A água descia. A barriga começou a contrair-se, como se um filho dali fosse nascer. Sentiu náuseas. O ser deveria ser expulso pela boca. Tomado por uma intuição maior, Moacir expele pela boca, através de uma força intensa, algo não visível. A barriga murchou... Moacir não teve medo. Enfrentou. A voz vinda do alto da cabeça comunicava sua enorme decepção. "Somos companheiros de anos. Você vai me abandonar agora". Em um relance de lucidez Moacir ouviu de si mesmo "vamos abrir mais uma".


Compreendeu tudo e falou por dentro da cabeça. "Amigo, é para o nosso melhor. Temos que nos despedir agora. Não estou contra você, estou a favor de mim, de nós." Moacir sentiu uma rajada de raiva. O tom da voz interna eloquente e imperativa afirmou: "fraco como é, julga-se capaz de se libertar de mim?"


Com calma e astúcia Moacir repete. "Caro amigo, é chegada a hora de nos despedirmos. Preciso continuar minha marcha. Você, a sua. Sei que estará amparado. Adeus."


Ao entrar na cozinha ainda de cabelos molhados Clarisse espantada diz.


— O que houve com seu rosto? Quem te arranhou desse jeito?


Moacir disse.


— Quero apenas ser eu. Não bebo mais.


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Gielton




Corações entrelaçados


Nesse dia, não bebeu. Foi a forma que encontrou para amenizar seu mal-estar. Não lhe cabia mais estar aqui e lá ao mesmo tempo. Entre a loucura da embriaguez e a sensatez da meditação. Entre os fantasmas dos fundos dos copos de cerveja e a bondade que invadia seu coração em flashes de lucidez. Havia algo fora da ordem. Havia algo fora do lugar.


Clarisse estranhou. Moacir permaneceu introspectivo todo o dia. Como se o silêncio dos lábios fosse a magia do dia, até bastante quente para um outono já avançado. As estações do ano não são mais as mesmas. Limitou-se a picar abobrinhas e cenouras da forma como Clarisse exigia. Nenhum copo antes do almoço. O primogênito caçula até perguntou. "Não vai tomar uma cervejinha hoje, pai?" Moacir, de poucas palavras nesse dia, apenas deu de ombros.


Apesar de não transparecer tinha orgulho de seu filho, jovem e determinado. Noivo, de casamento marcado para 2021, sentia-se inseguro quanto a possibilidade ou não da realização do grande sonho. Aguardavam, ele e sua noiva, o andar da doença pelo mundo para decidirem. Moacir, a alguns meses atrás, acompanhou o casal na compra do tão desejado apartamento. Pequeno em dimensões, do tamanho das fantasias possíveis e profundo nos significados das conquistas e quimeras de uma vida a dois. Claro, financiaram, ele e Clarisse, parte do imóvel, em um bom negócio de pai para filho. A vida parecia prometer muita felicidade aos dois. Eram lindos em pessoas!


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Atualizado: 29 de nov. de 2023


Tabuleiro de xadrez com peças caidas



Naquela manhã, deitou-se sobre o piso do quarto. Escolheu um canto diferente, como se a intuição lhe alumiasse. As palmas da mão imobilizadas permaneciam relaxadas ao lado do tronco com a barriga voltada para o topo. Enquanto a respiração amainava, focava o pensamento em partes do corpo. Primeiro os pés, depois a panturrilha, subindo até os joelhos... Seguia o ritual aprendido no livro das vibrações.


De repente, um estado intermediário entre o sono e a vigília o levou para um cenário vivo e real, como se estivesse dentro de um filme no qual era o ator principal. No entanto, o script não estava pronto. Moacir definia o próprio enredo. Tinha o controle da situação. Subia uma colina acompanhado de outros homens. Cavalos, vacas, porcos e cachorros se misturavam à gente do povoado. Casebres bem modestos de telhas de palha ao pé da colina tinham em suas portas pessoas maltrapilhas e assustadas. Havia uma tensão no ar. Envolto em uma espécie de armadura que lhe pesava os braços, Moacir apontava uma ou outra choupana. Os soldados que o acompanhavam desciam para buscar mulheres. A dor espalhava-se. Os choros em forma de gritos e pedidos de clemência retumbavam. Sem dó essas famílias eram mutiladas. Mães, esposas e jovens eram arrancadas, como simples peças de um tabuleiro.


Os cabelos longos caídos sobre os ombros e o olhar, ao mesmo tempo submisso e desafiador daquela mulher em especial, chamou-lhe a atenção. Ela vestia uma túnica branca encardida e uma saia preta bem longa. Quase cobriam os pés descalços e delicados, apesar de ásperos, sinal de quem labuta a terra. Moacir a viu por um relance, suficiente para marcar sua memória.


De súbito, Moacir retorna ao mundo físico. Assustado relembra o sonho e se questiona. "Como sonhei se não estava dormindo? Foi tudo tão real. Eu, poderoso, dava ordens e causava dor. Será que..." Permaneceu absorto, ainda deitado no canto do dormitório, por algumas voltas do relógio.


Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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