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Gielton



Mesa pós almoço





Já haviam terminado o almoço, mas permaneciam papeando. A garrafa de cerveja, ainda cheia, compunha a mesa com os pratos vazios deixados ao lado.


Um deles lia "O tempo". Mais folheava do que se concentrava. As letras mal se sustentavam sobre o jornal que pendia a quase dobrar para baixo. Só não o fez por milagre do pouco peso. As pernas cruzadas com um dos pés sobre o joelho, como os homens costumam usar, davam o ar de machos locais, aqueles dos interiores das Minas Gerais. Nem tanto. Talvez a idade, já passada a juventude, tenha lhes tirado o vigor, mas o jeito não negava a presunção de pegadores ou metidos à besta. Sobre os óculos, a todo o tempo, o olhar se desviava para a rua, como se os poucos transeuntes fossem a notícia que mais interessava.


O papo parecia sem nexo. Entre um e outro gole de cerveja, a voz levemente arrastada e baixa, não permitia ouvir em detalhes o diálogo intercalado por grandes silêncios. Claramente era conversa para boi dormir.


De repente, ambos se viraram para a calçada. O jornal, largado sobre a mesa, enciumou-se quando a calçada ganhou atenção.


— Você viu?

— Delícia, né.

— Se desse mole, eu comia...

— Vem não, você não aguenta aquilo.

— É, não guento mesmo não, mas, olha, não sai do pensamento...


Caíram na gargalhada.


Nem desconfiaram...


Assim, a vida! Até quando esse corriqueiro impregnado?

  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Gielton





Nasci em uma tradicional família mineira, de muitos tios, tias, primos e agregados. Religiosamente católica. Na média, pouco praticante. Árdua defensora da moral e bons costumes. Muito disso tudo, para fora. Pouca coerência entre o dito e o feito.


Pode ser que encrustadas entre as montanhas, a mente desconfiada do mineiro preserve a moral das aparências. Coisas são feitas às escondidas. Custei a perceber!


Os churrascos nas casas de primos prósperos eram frequentes. Em dias dos pais, das mães, Natais e alguns aniversários celebrávamos bons encontros. Adorava! Era parte.


A lembrança orgulhosa, ainda na infância, era pertencer ao clube “do bolinha” - uma divisão límpida com linha muito bem demarcada. Homens de um lado bebendo, fumando, discutindo futebol, jogando cartas, contando piadas e gargalhando alto sem o menor pudor. Do outro, mulheres servindo...


Isso era ser homem. Assim, aprendi os jeitos e trejeitos, os gostos e padrões, os gestos e jargões... A masculinidade estampava-se na força muscular, no jeito bruto e escrachado de ser, no "sem frescura" - atualizado hoje pelo "deixa de mimimi" - na forma tosca de tratar o mundo, as pessoas, as mulheres. A lógica rasa das questões sociais mais complexas e a ignorância do sentimento faziam parte da nossa inteligência, supostamente superior.


Ser Gay? Nem pensar! Desejar outro homem? Incabível! Senão, estaria fodido! Literalmente. Não sofri preconceitos. Os tive, simplesmente.


Criei teorias. Na adolescência dizia: nada tenho contra os "bichas", desde que não mexam comigo. Os tolero. Por dentro, a vontade mesmo era de acabar com a raça deles. Será que essa repugnância os atraía? Nossa, de quantos olhares desviei. Quanta raiva senti!


Orientação sexual? Só existia uma. A minha, claro: homem que gosta de mulher. O diferente era distúrbio. Fique com seu transtorno longe de mim. Sei lá, dá que eu pego isso...


Nesse modelo construí minha identidade masculina e dela extraí a explicação "científica" para os "afeminados": homens que não deram conta das mulheres. Simples assim. Uma frase de impacto e muitas narrativas! Pense... Sente alguma conexão?


Tive a sorte, talvez intuição, de escolher para cúmplice da minha vida uma feminista. Uma professora de ampla visão social e humanista. A quem a dor do outro é retrato de si mesma. Para acolher basta estar, é parte do ser. Uma mulher livre! Além e presente no seu tempo.


Perder essa oportunidade? Nem pensar! Agarrei o cipó da vida e, pensante, me deixei levar... Fácil? Dolorido derrubar crenças internas alicerçadas em modelos tão bem estruturados. Vergonha ao perceber tanta poeira por trás da cortina. Reagir e assumir? Mais difícil ainda. Podia guardar comigo, mas é momento de me declarar!


Não sou gay! Por raras vezes me senti atraído por outro homem. Prefiro as mulheres! Sinto-me em paz com minha sexualidade. Pelo menos por enquanto.


Apuro cotidianamente o respeito pelo outro no mais alto grau da empatia que alcanço. No âmago dessa consciência cresce, a cada dia, o desejo de desejar o melhor a todos, sem restrições. O amor entre almas transcende orientações. Não há setas, formas, condutas e padrões para amar.


O amor multiplica! Irradia as benesses da alta vibração. Expande consciência e potencializa acolhimento. Amplifica o universo interior e infla o ego da bondade.


Preconceito restringe, limita, estreita...


Há muito detrito em mim a ser depositado nas lixeiras do sentimento. Catar cada grão, por menor que seja, e reduzir o peso da intolerância que se hospeda nas entranhas da consciência, é tarefa diária.


De coração quente e mente transparente digo: estou ao lado dos gays, assumidos ou não, na luta pelo direito, mais que justo, de serem!


Avante!


Assim a vida! Destinos podem selar uma história.


Imagem do post em <https://pin.it/6FRW3e1>

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Gielton


A brisa esfriou o tempo e nos expulsou bem antes do que pretendíamos. Ainda bem, pois abraçamos uma experiência culinária e existencial sem igual.


Maria D'Ajuda, esse é o nome dela. D'Ajuda, tão simbólico, tão representativo, tão significativo... Separou-se, por própria escolha, quando o caçula dos oito filhos tinha menos de 10 anos. Aprumou a coragem e elegeu a incerteza. O marido sumiu. Nenhuma ajuda nesses mais de 50 anos.


Pode até ser uma história como a de muitas mulheres negras brasileiras. Filhos cuidam dos irmãos menores enquanto, nas claras horas do dia, se ausentam. Varrendo, lavando e cozinhando em casa de patroas, trazem, quando muito, o escasso leite das crias. Sozinhas, extraem da esperança a força para matar seu leão diário.


Parece algo corrente com o qual até nos habituamos. Banalizar a carência alheia expulsa de nossos corações a compaixão. Endurecidos, nem notamos nosso semelhante ser humano.


Não, Maria D'Ajuda é digna de admiração. Exemplo de vida simples em terra distante, parcos recursos e baixo letramento. Abreviou da vida sabedoria. Do anos fez aprendizado.


A neta, ainda criança, prenunciava.


— Quando crescer quero ir para a faculdade.


— Que isso menina, tire isso da cabeça... onde já se viu uma coisa dessas?!


Expropriada por anos em pousadas de empreendedores sulistas que, aos olhos desatentos, romanticamente trocam a vida agitada da capital pela calmaria da beira mar, D'Ajuda seguiu sua sina de "a quem de direito carrega essa terra com todo respeito", como diria Gilberto Gil em Índigo Blue.


Após a última demissão arquitetou um pequeno restaurante na varanda de sua casa. Soube captar o agrado de sabores culinários e estéticos daqueles que vinham em temporadas. A comida, uma delícia, o espaço, agradabilíssimo!


Quando a copa do mundo veio ao Brasil, aquela neta estudiosa e dedicada a pouco ingressara na Universidade Federal do Sul da Bahia. A primeira da família, entre irmãos, pais, tios e avós a cursar o superior do ensino médio. Quanta honra lhe coube. Quanto orgulho da avó. Quão emocionante foi ouvir D'Ajuda contar essa história. Quão inesperado seria, se não fosse...


Sábia Maria D'Ajuda sabe quem a ajudou... Tempos bons de políticas que miraram as netas e filhas das empregadas e ofereceu essa oportunidade única a muitas famílias. Parece pouco, mas não. Sentir de perto engrandece, os pelos arrepiam, o coração amolece!


Prosear com Maria D'Ajuda, saborear seu arroz de polvo ao ponto e conhecer de dentro essa história entrelaçada, transformou nosso dia em puro encantamento.


Assim, a vida! O pouco que muito é!

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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