DESCENDO A PEPERI
- Gielton
- 25 de fev. de 2019
- 3 min de leitura
Gielton

Minhas primeiras experiências com carrinho de rolimã foram com uns nove anos. Nas férias de julho passávamos o dia inteiro descendo a rua Peperi, de terra batida, até o final, onde literalmente acabava em dois campos de várzea enormes, de tamanhos, tipo oficiais.
Era a conta de chegar lá embaixo, reparar nos companheiros de aventuras, levantar e começar o caminho de volta. Repetíamos esse ritual umas cinquenta vezes no dia. Descer na maior velocidade possível e subir andando e conversando sobre a brincadeira. Nó, quase capotei para desviar da pedra!! Ou se gabando pela ultrapassagem sensacional. Quando a poeira era muita, a rolimã engastalhava. Aí, tinha que parar, chegar para o canto da rua e fazer xixi sobre as esferas da rolimã para "desengastalhar". Falávamos também das paixões, das irmãs dos outros, da seleção brasileira de futebol, das masturbadas... Era papo que não acabava mais. Chegava em casa, de tardinha, uma poeira só!!! Mamãe até aceitava bem nossas roupas imundas, mas ficava brava se enrolávamos para o almoço. Aí tinha bronca!!!
Estava em casa pela manhã, quando meu pai me chamou. Descemos até a área de tanque. Lá estavam as ferramentas: serrote, martelo, pregos, madeiras... Foi assim, desse jeito repentino, que nasceu meu carrinho de rolimã. Sempre fui impressionado com a habilidade do meu pai. Serrava, media, encaixava. De vez em quando, me pedia para segurar alguma coisa ou pegar uma ou outra ferramenta. Aos poucos o carrinho foi ganhando forma. Ficou pronto quando o banquinho e o freio foram instalados.
– Vamos testar? – disse ele.
– Claro, pra já! - respondi.
Minha primeira manobra, me lembro bem, como se fosse hoje, foi uma descidinha de nada, do portão da garagem do vizinho de frente, até nossa garagem. Que emoção! Que alegria! Agora tinha meu carrinho e poderia brincar com todos da rua. E mais, ele era especial. As rodas traseiras eram de velocípede o que lhe dava uma vantagem enorme em relação aos demais. Tava feito! Felicidade sem medida!!!
O único que ganhava de mim era o Mauro, irmão da Vânia. O dele tinha as rodas dianteiras e traseiras feitas de uma borracha preta, que encaixava nas rolimãs por dentro, fixadas ao eixo. Zunava!!! Um detalhe: ele mesmo o havia projetado e construído. Era um cara muito habilidoso, extremamente cuidadoso e ciumento com suas coisas. Apesar de nossa grande amizade, poucas vezes pilotei seu possante.
Os vizinhos de frente, mais velhos do que nós, não fizeram um carrinho de rolimã. Construíram um caminhão de rolimã. Era enorme, com rodas grandes e uma carroceria, que dava para levar uns cinco meninos. Diversão pura, descer a Peperi nessa carroceria!
Um dia, no início da descida, reparei que alguns meninos começaram a me ultrapassar correndo à pé. Abandonaram a carroceria do caminhão de rolimã e correram desembestadamente. Outros corriam com seus carrinhos nos braços. Olhei para trás. Eram os "pivetes da favela" horrorizando todo mundo. Como estava na frente, avaliei que daria para chegar em casa antes deles me alcançarem. Não deu.
Na altura do grupo escolar me laçaram com uma corda no pescoço. Eu fui o único da turma toda que não escapou. Tinham fama de maus. Me meteram medo dizendo que iam levar meu carrinho, que iam me bater, que isso, que aquilo. Enforcado por uma corda totalmente frouxa, eu chorava copiosamente implorando que não fizessem aquilo comigo. Me senti desprotegido, sem ação, sem ter o que fazer. O drama todo durou uns dois minutos, mas meu desespero era tamanho que pareceu uma eternidade. Finalmente me soltaram. Não me machucaram, não roubaram, não bateram.
Desci o resto da rua até o portão de casa chorando sem parar. Aos prantos e soluços de criança assustada, ainda tive que aguentar a gozação dos amigos que se salvaram.
Assim, a vida. De repente, aparentemente do nada, o fluxo muda trazendo consigo emoções inesperadas.
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